02/05/2010 21:05

Histórias de vida e transtornos alimentares: intersecções multifacetadas

Daniela Ferreira Araujo Silva


 Resumo

Se o modelo atual de causalidade para o conjunto de perturbações denominadas “transtornos alimentares” no campo das ciências biomédicas inclui fatores de ordem sócio-cultural, a própria história da definição desses transtornos indica que a intersecção entre tais perturbações e categorias sociais como gênero, classe e etnicidade permanece um terreno muito pouco explorado.

Partindo de uma pesquisa baseada na construção de histórias de vida de pessoas que enfrentam ou enfrentaram um transtorno alimentar, o presente artigo procura indicar que tal abordagem metodológica abre possibilidades interessantes para investigar algumas das formas em que essas múltiplas dimensões da vida social co-produzem pessoas e suas aflições.

 

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A partir da década 1970, os transtornos alimentares emergiram como alvo de maior atenção das disciplinas biomédicas, sobretudo nos Estados Unidos, chegando a suscitar preocupações sobre uma possível “epidemia”[1]. Não há consenso se o aumento dos casos identificados reflete um crescimento na incidência, ou apenas à ampliação da capacidade de reconhecer sintomas e efetuar diagnósticos (Weinberg; Cordás, 2006: 17). Todavia, há quem defenda que tal aumento estaria relacionado à expansão da “lipofobia” [fat-phobia] lado a lado com a preocupação generalizada com a “epidemia de obesidade” nas mesmas décadas. Tampouco há consenso no tocante à relevância da contribuição dos ditos fatores sócio-culturais na causalidade dos transtornos alimentares, mesmo que alguns tenham sugerido classificá-los como “síndromes ligadas à cultura” [cultural-bound syndromes] (KEEL; KLUMP, 2003: 747).

Independentemente das controvérsias citadas, é possível afirmar que há um pressuposto compartilhado de que, qualquer que seja a influência dos fatores sócio-culturais na incidência dessas perturbações, tais fatores estariam ligados a aspectos da sociedade e cultura ocidental contemporânea, como o individualismo competitivo, a cultura de consumo, a crescente influência das disciplinas biomédicas na vida cotidiana através de noções como prevenção de riscos e a auto-responsabilização pela manutenção da saúde, à lipofobia e ao padrão de beleza que sobrevaloriza a magreza.

Esse pressuposto ganha destaque ao voltarmos-nos para as questões suscitadas pela “descoberta” de casos de transtornos alimentares em segmentos populacionais antes considerados como “protegidos” dessas desordens. Se inicialmente a maioria dos casos identificados ocorriam em mulheres jovens ou adolescentes, brancas, heterossexuais, de classe média a alta em países ocidentais desenvolvidos, cada vez mais surgem relatos de casos não apenas em minorias étnicas ou raciais nesses mesmos países (NICDAO et al, 2007), como nas mais diversas regiões do mundo (NASSER, 1997: 37-38), e também entre homens (RICCIARDELLI et al, 2007), gays, lésbicas, crianças e pessoas mais velhas (MARCUS et al, 2007). Novamente, inexiste o consenso se esses casos representam uma mudança no perfil epidemiológico ou se esses eram segmentos populacionais sub-diagnosticados. Todavia, ainda não se encontrou nenhuma hipótese razoável para explicar a disparidade da distribuição dos casos entre os diferentes segmentos que não passe pelo argumento da influência dos fatores sócio-culturais (NASSER et al, 2001; SOH et al, 2006).

Em linhas bastante gerais, tais explicações atribuem o surgimento (ou incremento) da incidência de transtornos alimentares nesses grupos como efeitos de processos de modernização – um termo guarda-chuva que pouco nos informa sobre o caráter e sentidos dos processos sociais a que tenta aludir.

Mais curioso ainda parece o fato de que, enquanto a “modernidade” parece ser um fator sempre limitado para explicar a “epidemia” de transtornos alimentares em segmentos populacionais plenamente ocidentais e desenvolvidos, o mesmo argumento torna-se a explicação padrão para sua ocorrência nesses Outros grupos. Seja como um efeito colateral ou um mal necessário ao desenvolvimento (pensado sempre em termos de uma progressiva aproximação ao padrão ocidental desenvolvido, ou “aculturação”[2]), ou ainda como a expressão do conflito vivido por pessoas diante da escolha entre valores tradicionais e modernos (choque entre culturas), os transtornos alimentares parecem ser pensados como algo inerente ou automático à modernidade, sobretudo em referência a Outros contextos sócio-culturais.

Há poucos estudos qualitativos que procuram endereçar os conteúdos culturais das perturbações alimentares, e os raros estudos sobre esses transtornos que empregam a metodologia de histórias de vida não endereçam diretamente a questão da alteridade cultural[3]. Para fins deste artigo, gostaria de comentar brevemente um desses trabalhos (BECKER et al, 2002; 2007), dada a sua importância no campo dos estudos sobre a relação entre transtornos alimentares e cultura, atentando para alguns dos limites resultantes da metodologia empregada. Em seguida, partindo de dados de minha própria pesquisa de doutoramento[4], sugiro que o uso de histórias de vida pode ser uma estratégia de investigação interessante na investigação de alguns aspectos desta relação que não são contemplados por outros métodos de pesquisa.

A antropóloga e psiquiatra norte-americana Anne E. Becker ganhou notoriedade por sua pesquisa nas Ilhas Fiji, na década de 90, que teria demonstrado a emergência de transtornos alimentares nessa região após a introdução da televisão, em 1995. Em um estudo anterior, Becker tentara explicar a ausência de transtornos alimentares em Fiji a partir das concepções étnicas fijianas tradicionais de pessoa. O estudo sobre o impacto da introdução da televisão a que me refiro, cujos resultados foram apresentados em diversos artigos[5], foi conduzido em uma comunidade rural de Fiji Ocidental (Nadaroga), entre adolescentes autodenominadas etnicamente fijianas em escolas secundárias. Foi um estudo prospectivo interseccional em duas fases, sendo a primeira em 1995 (poucas semanas após a chegada da televisão na região), e a segunda em 1998.

As participantes do estudo responderam a um questionário padronizado auto-aplicável sobre atitudes alimentares, o EAT-26, em sua versão na língua inglesa. Segundo Becker, como o inglês era a língua escolar oficial, todas as participantes do estudo foram consideradas fluentes. Para garantir a compreensão do questionário, palavras e conceitos que os pesquisadores supunham ser de mais difícil compreensão também foram explicados oralmente, em inglês e em nadaroga, a critério dos pesquisadores. Além disso, perguntou-se sobre a presença de aparelho televisor na casa de domicílio, sobre a freqüência com que assistiam TV, e aferidos o peso e a altura das participantes do estudo.

Uma pontuação acima de 20 no EAT-26 era considerada alta, e indicativa de risco para Transtornos Alimentares (TAs). As participantes que relataram episódios de compulsão alimentar ou comportamentos purgativos responderam também a um questionário semi-estruturado elaborado especialmente para o estudo, modulado pelas definições clínicas de purgação e compulsão alimentar, para confirmar a presença desses comportamentos.

Em 1998, novas perguntas foram adicionadas, endereçando dados como imagem corporal, dietas e potenciais disparidades intergeracionais entre sujeitos e seus pais quanto a tradições a respeito de dieta e peso.

Constavam ainda perguntas específicas, centradas em se (e como) a exposição à televisão ocidental no contexto de rápida transição social e econômica teria estimulado mudanças na imagem corporal e perturbações alimentares, a despeito das práticas culturais locais que tradicionalmente favoreciam apetites e formas corporais robustos.

No tocante aos resultados do estudo, Becker aponta para dois dados mais significativos na comparação entre as duas amostras: um aumento da pontuação média no EAT-26 entre 1995 e 1998, bem como uma presença de vômitos auto-induzidos em 11,3% em 1998, contra 0% em 1995. Não cabe aqui entrar nos pormenores dos resultados do estudo, mas de acordo com os dados apresentados por Becker, a pesquisa teria estabelecido uma correlação entre a exposição à TV e a presença (e o aumento) de sintomas alimentares.

Quanto às entrevistas abertas de 1998, Becker identifica vários temas que, segundo o artigo, sugerem a profunda influência da televisão em atitudes e comportamentos relacionados à dieta, peso e forma corporal nessa faixa etária. Esses temas seriam: 1. Prevalente admiração por personagens televisivos e o desejo explícito de imitá-los mediante a modificação de comportamento, estilo de cabelo e vestimenta e modificação corporal; 2. A grande maioria dos participantes admitiu que a televisão teve influência direta na modificação de seus sentimentos quanto ao peso e à forma corporal, bem como nas iniciativas de modificá-los. A maior parte também admitiu influência direta da TV em sua auto-percepção corporal; 3. As participantes demonstraram um marcado interesse em aprimorar suas chances de assegurar um emprego, e 40% racionalizaram o desejo de comer menos ou de perder peso como um meio para progredir na carreira ou tornar-se mais útil em casa. 4. 30% dos entrevistados indicaram que personagens televisivos serviam como modelos no tocante a questões de trabalho e carreira. 5. Todos os sujeitos entrevistados indicaram maneiras em que a TV afetou normas e comportamentos tradicionais, enquanto alguns sujeitos relataram perceber o desenvolvimento de tensões intergeracionais em função da adoção, por parte dos mais jovens, de costumes ocidentais vistos na TV, mencionando especificamente conflito sobre as expectativas quanto à quantidade adequada de comida a ser ingerida.

Becker conclui:

É uma conclusão lógica e assustadora que meninas e mulheres vulneráveis de diversas populações, que se sentem marginalizadas das fontes de prestígio e status da cultura localmente dominante possam ancorar suas identidades em símbolos culturais de prestígio amplamente reconhecidos, popularizados por idéias, valores e imagens importados pela mídia. (BECKER et al, 2007, p. 555. Tradução livre.)

A meu ver, o principal limite da metodologia empregada por Becker é não endereçar em maior profundidade os sentidos atribuídos por seus sujeitos de pesquisa tanto ao que assistiam na televisão quanto às mudanças que dali decorreram. Não fica claro, por exemplo, a razão de terem associado o desejo de comer menos ou perder peso com progredir na carreira ou ser útil em casa. A autora parece supor que a associação entre magreza e diligência, disciplina e sucesso profissional – relatada por diversos autores no que diz respeito à sociedade norte-americana – tenha sido automaticamente absorvida por essas jovens junto com as imagens transmitidas pela TV. Algo semelhante parece acontecer no tocante aos efeitos sobre normas e comportamentos “tradicionais” e tensões inter-geracionais: os “valores tradicionais” seriam representados pelas gerações mais velhas – notadamente, àquela dos pais da geração considerada vulnerável aos TAs. Essa nova geração estaria vivendo o conflito entre duas “culturas”: de um lado, os valores “tradicionais”, coletivistas e solidários, de outro, o apelo aparentemente irresistível de ingressar em um mercado de trabalho nos moldes capitalistas do individualismo e da competitividade. O pressuposto aqui é que o ingresso nesse mercado de trabalho é sempre visto como uma possibilidade de ascensão social, libertação e um meio de acesso aos bens de consumo ocidentais – imaginados como inerentemente sedutores, enquanto a “tradição” seria uma espécie de aprisionamento, que alijaria essas jovens das fontes de prestígio e status.

Os resultados apresentados pouco informam sobre quais seriam os elementos “tradicionais” que estariam limitando o acesso dessas jovens às fontes de prestígio e status, quais seriam tais fontes tradicionais, o significado de status e prestígio em Nadaroga ou mesmo se as mudanças em processo nessa sociedade – que certamente não se limitam à introdução da televisão – estariam modificando o que se entendia por prestígio e status.

Por outro lado, todo conteúdo televisionado parece ser reduzido à mera transmissão do “modelo ocidental”, sem que se desse atenção às diferenças e nuances de significados distintos de feminilidade que as personagens citadas como inspiração estariam representando para as jovens fijianas. Me parece digno de nota que de todos os possíveis ícones femininos oriundos da televisão ocidental, as estudantes fijianas participantes do estudo de Becker tenham citado a personagem Xena com mais freqüência.

Para Becker, a valorização de Xena entre as adolescentes fijianas está relacionada ao desejo por um corpo feminino magro e atlético, bem como à capacidade de competir em iguais condições com os homens no mercado de trabalho. Mas, voltando atenção para o conteúdo do seriado, a menção a Xena parece apontar para outra direção, sobretudo se pensarmos que o outro programa mais citado foi “Beverly Hills 90210”.

Este último retratava o cotidiano de um casal de irmãos gêmeos oriundos de Minnesota que passaram a morar em Beverly Hills, onde se vêem às voltas com as exigências do padrão local de sucesso, fortuna, consumo e aparência. De acordo com a interpretação de Becker sobre os desejos que estariam representados nessas figuras televisivas, parece curioso que as meninas tenham preferido citar Xena a alguma das diversas personagens de Beverly Hills (que oferecem uma ampla gama de jovens mulheres bem sucedidas em que meninas poderiam se espelhar).

Em primeiro lugar, Xena nunca chamou a atenção enquanto um ícone de magreza: dotada de um físico bastante atlético, é mais corpulenta do que a grande maioria das atrizes de televisão. Segundo a trama, Xena era uma guerreira de habilidades extraordinárias, em alguma época remota e mítica na antiga Grécia. Cometeu terríveis atrocidades enquanto chefiava uma milícia de bandidos, e por isso tornou-se inimiga do próprio Hércules – com quem rivalizava em força e habilidade marcial.

Após se arrepender de seus crimes, saiu em busca de redenção lutando contra todas as injustiças que encontrava em seu caminho, acompanhada sempre por sua fiel companheira Gabrielle, uma “barda”, e seu verdadeiro amor. Embora o relacionamento homoafetivo entre as duas personagens não seja propriamente conjugal ou monogâmico – em vários momentos da série ambas estabelecem relacionamentos com homens – o elo entre as duas permanece o mais forte através de toda a trama, e é através do amor de Gabrielle que Xena consegue alcançar sua redenção. Além disso, o seriado foi inteiramente filmado na Nova Zelândia, e contava com a participação de vários atores etnicamente maori em papéis secundários – o que pode ter contribuído para a identificação da população fijiana com o programa.

Essa breve descrição do seriado Xena me parece suficiente para sugerir que o foco de Becker, ao limitar-se a sintomas alimentares e à questão da magreza, acabou desperdiçando possibilidades sugestivas de uma investigação mais aprofundada sobre as formas como essas imagens femininas trazidas a Fiji pela televisão estavam sendo recebidas e interpretadas pelas adolescentes fijianas, e influenciando sua relação com seus corpos e sua alimentação.

A seguir, apresentarei sucintamente alguns elementos de uma das histórias de vida realizadas em minha pesquisa para apontar alguns ganhos possíveis de tal metodologia em relação à utilizada por Becker para investigar a relação entre transtornos alimentares e fatores sócio-culturais.

Vivianne[6] conta que sua mãe vem de uma família relativamente abastada de São Paulo – SP. Seu avô materno possuía uma gráfica, e sua avó era dona de casa. Ela relata que quando sua mãe nasceu, o avô disse, ao descobrir que era uma menina: “Que pena! Não vai levar o nome da família para diante.”

Apesar da situação financeiramente confortável da família materna, Vivianne afirma que os avós e tios eram “muito machistas e não tinham cultura”. Os homens da família tratavam as mulheres como “inferiores”, fazendo constantes comentários sobre sua suposta limitação intelectual. Ela afirma que até hoje tem muito medo de ser chamada de “burra”, pois é o que o avô e o tio faziam com a avó e mãe.

Apesar disso, sua mãe estudou em um bom colégio. Em casa, era tratada como a “menininha da casa” e a “filhinha do papai”. Não se esperava que fizesse um curso superior: foi criada para ser “uma boa moça, casar e constituir família”. A mãe de Vivianne fez um segundo grau técnico em contabilidade e, ao se formar, foi trabalhar em um banco – o que era uma fonte de status para a família na época.

Segundo Vivianne, sua mãe se sentia aprisionada pelas expectativas da família para ela. Fazer o curso técnico e trabalhar no banco eram tentativas de ampliar um pouco seus horizontes. Apesar disso, “o sonho da vida dela era construir uma família”.

Foi através do trabalho no banco que sua mãe conheceu aquele que viria a ser seu pai. A irmã do pai de Vivianne era cliente do banco, e tornou-se amiga de sua mãe. Foi ela quem os apresentou. O pai de Vivianne era feirante, e divorciara-se da primeira esposa após flagrá-la “na cama com outro”. Sua mãe apaixonou-se por seu pai, e começou a namorá-lo a contragosto de sua família – que desaprovava o pretendente de status sócio-econômico inferior.

Ela conta que seus pais “não chegaram a se casar, nem no civil, nem no religioso”, mas que passaram a morar juntos após sua mãe ter engravidado. A família materna, entretanto, nunca “engoliu” seu pai: viviam a criticá-lo, afirmavam que ele era adúltero, e os tios viviam tentando flagrá-lo em adultério. Três meses após seu nascimento, sua mãe engravidou novamente, mas sofreu um aborto espontâneo aos cinco meses de gravidez: o bebê era um menino. Vivianne diz que sua mãe lhe falou sobre o aborto quando ela tinha 5 anos de idade, e que por muito tempo, se sentiu culpada por isso: “e de certa forma queria ser meu irmão de algum jeito para minha mãe sofrer menos. Porque ela sempre se referia ‘Se eu tivesse um menino’... e por muito tempo quis ser esse menino. Eu não usei saia até meus 14 anos.”

Quando Vivianne tinha 4 anos de idade, seu pai fez as malas e saiu de casa. Sua mãe ficou completamente “desestruturada”, emocional e psicologicamente. Por isso Vivianne fala que “não teve mãe”. Sua mãe ficou tão fragilizada que Vivianne sentia que cuidava mais da mãe do que a mãe dela. Por isso queria ser o irmão que não teve, para cuidar da mãe. Quanto ao pai, a ajudava financeiramente, mas era ausente em tudo o mais. Ela relata que sua mãe continuou “correndo atrás” de seu pai, ligava para ele a toda hora, implorava que ele voltasse, se humilhava. Ela também se recorda de um incidente ocorrido aos quatro anos de idade: sua mãe estava muito descontrolada, passando mal, havia tomado muitos calmantes. Foi a própria Vivianne quem pegou o telefone e ligou pedindo ajuda.

Tudo isso fez com que Vivianne não quisesse ser “mulherzinha” – o que para ela significava estar à mercê das vontades masculinas, depender totalmente dos homens e ser humilhada por eles, “ser tratada como um objeto” que pode ser “jogado fora”. Por isso mesmo, tornou-se “um moleque”. Preferia a companhia dos meninos e as brincadeiras masculinas. Ela adorava andar de bicicleta. Seu tio passou com o carro por cima de sua bicicleta para que ela parasse de andar. Ela continuou andando na bicicleta torta mesmo. Em seguida, ela diz que sua mãe nunca andou de bicicleta porque seu avô dizia que “bicicleta era coisa de menino, e ela ficou com medo de andar”.  Tornou-se muito competitiva em tudo, nos esportes e nos estudos. Não tolerava que ninguém “fosse melhor que ela”. Também diz que “tacava a zona” na escola, ou seja, fazia parte da turma dos “moleques bagunceiros”: “Aí eu era bem amiga de meninos na escola, jogava bola com eles. Cheguei a jogar futebol no Palmeiras e no Juventus. (...) É, eu era lateral direita e jogava muito bem, (...) fiquei muito amiga deles, saia para pichar com eles...”

Durante a infância, em algum momento passou a engordar e a comer muito, e que aos doze anos, pesava 82 kg mas não se achava gorda, apesar de ter sofrido com a zombaria de alguns colegas da escola. Embora não saiba ao certo o que a levou ao excesso alimentar e ao ganho de peso, Vivianne acha possível que tenha procurado na comida o conforto e a segurança que sua família não era capaz de lhe dar. Além disso, o corpo maior também podia ser uma forma de se afastar do modelo de fragilidade feminina valorizado pela família materna. Foi durante a oitava série que desenvolveu anorexia, após decidir emagrecer “para a viagem de formatura”. Nessa época, começara a desenvolver um interesse romântico por um de seus amigos do futebol, que morava no mesmo bairro.

O surgimento do desejo pelo sexo oposto despertou sentimentos muito contraditórios: ao mesmo tempo em que queria ser desejada e correspondida em seus afetos, Vivianne receava que isso a transformasse na mulher que sua família gostaria, e que ela sempre fizera questão de rejeitar. A anorexia, que foi acompanhada de um intenso abuso de álcool e drogas, foi a forma que encontrou para simultaneamente “matar” essa futura mulher que sua família queria que ela fosse, e de tentar encontrar alguma forma de feminilidade que desse vazão ao seu desejo. Durante a viagem de formatura, Vivianne perdeu a virgindade com um rapaz que conheceu em uma boate, cujo nome não se lembra. Ao saber do episódio, o amigo por quem se interessara a chamou de “vagabunda”: “Pintei meu cabelo de loiro branco, porque sempre falavam que eu era puta. Tirei a sobrancelha bem fininha, e só andava com roupas de axé. Eu hoje, olhando de longe, acho que eu quis me detonar. Porque queria matar a Vivianne que [a família materna] tinha feito, queria me livrar de qualquer resquício do mundo que me suprimia. Porque eu queria ser mulher mas tinha medo de ter opinião sexual, mas ser inteligente, ser alguém. Queria ser mulher mas não só mulher, entende?”

Vivianne só começou a melhorar quando estabeleceu um novo círculo de amizades, com um grupo de “caiçaras” que conheceu em uma viagem à praia. Foi através da convivência com esses amigos, de classe social mais baixa, que Vivianne começou a perceber que poderia encontrar outro modo de viver, distinto do modelo valorizado por sua família materna. Começara a cursar faculdade de gestão ambiental, e decidiu fazer o período de estágio previsto na praia. Seu pedido de estágio foi negado, mas Vivianne mentiu para os pais e sob esse pretexto, morou na praia por seis meses trabalhando como garçonete. Eventualmente, conseguiu lá mesmo um outro estágio.

Foi também com um de seus amigos caiçaras, Arnaldo, que Vivianne conseguiu estabelecer um relacionamento afetivo e sexual que contribuiu para que descobrisse uma forma de “ser mulher” com que se sentia à vontade: “Ele não queria saber da minha vida, me tratar como mulherzinha, me tratar bem. E ele me respeitava como pessoa.” O relacionamento nunca pressupôs exclusividade de ambas as partes, mas durou por vários anos, e contribuiu bastante para que vivianne lutasse contra a anorexia e começasse a cuidar melhor do corpo: “porque eu achava o Arnaldo bonito, e também queria ficar bonita”.

Através da convivência com os amigos da praia, e do trabalho na área de gestão ambiental – sempre ligado a projetos sociais – que Vivianne pôde construir uma vida pautada por valores em que acreditava, que se opunham àqueles que a família materna defendia e tentara lhe impor, e conseguiu superar o transtorno alimentar, e o problema do abuso de álcool e drogas: “A pessoa que eu queria ser era diferente da pessoa que minha família tinha criado e que me suprimia, e que quando eu consegui me ver, e ver quem eu era e ter um propósito de vida, e acreditar em algo, eu melhorei. Porque era o oposto do que eu vivia, eles [a família materna] sempre falavam com preconceito racial e com ‘os pobres’, em ‘ganhar dos pobres’, em supressão da mulher, em todo esse cenário que me fazia mal desde que me entendo por gente, e [eu] acreditava que o mundo era isso. E de repente eu vi que não era, que existiam as coisas em que eu acreditava, que eu poderia ser quem eu quisesse.”

O breve resumo da história de vida de Vivianne apresentado acima mostra como, em diferentes momentos de sua vida, sua relação com o peso e tamanho de seu corpo e a alimentação assumiram distintos sentidos e serviram a diversos propósitos. Além disso, só é possível apreender tais elementos em referência às múltiplas relações sociais que compuseram a trama de sua história. Se é verdade que os problemas alimentares de Vivianne expressaram conflitos de valores inter-geracionais e uma ruptura com determinadas tradições incorporadas por sua família materna, tanto os conflitos quanto as rupturas não podem ter seu significado deduzido a partir de uma equação direta entre os comportamentos do transtorno alimentar e uma busca por status e prestígio social pautada por valores tipicamente ocidentais como sucesso financeiro e profissional, individualismo, diligência e disciplina. Se o excesso alimentar e de peso, bem como a anorexia serviram para romper com os valores tradicionais de gênero da família materna, por ela vividos como limitadores e opressivos, também foram formas de romper com os preconceitos de classe e o individualismo empreendedor da família de classe média com aspirações de ascensão social, para construir uma vida pautada por valores mais solidários e coletivistas.

A história narrada por Vivianne nos oferece uma interessante porta de entrada para compreender as perturbações alimentares e de imagem corporal para além de interpretações de cunho psicológico individual, apontando para a íntima relação entre os denominados “sintomas” e os sentidos que estes adquirem nas diferentes relações sociais – dentre as quais se incluem as relações familiares – que fazem parte da constituição do sujeito. No relato de Vivianne, vemos como as normatividades de gênero e classe corporificadas por sua família estavam em desacordo com os valores que ela própria desejava para si.

Em Undoing Gender (2004), Judith Butler avança em sua reflexão sobre a performatividade de indentidades, produzidas na corporificação e no embate com as normatividades sociais, com a importância do reconhecimento:

O humano é diferencialmente compreendido dependendo de sua raça, da inteligibilidade de sua raça, de sua morfologia, da possibilidade de reconhecimento dessa morfologia, de seu sexo, da possibilidade de verificação perceptual desse sexo, de sua etnicidade, da compreensão categórica dessa etnicidade. Certos humanos são reconhecidos como menos do que humanos, e tal forma de reconhecimento qualificado não conduz a uma vida viável. Determinados humanos sequer são reconhecidos como humanos, o que conduz a uma vida inviável de outra ordem.”(BUTLER, 2004, p. 2; tradução livre).

Desse ponto de vista, seria possível considerar as perturbações alimentares e de imagem corporal como formas de expressar e tentativas de elaboração da falta de reconhecimento e inteligibilidade social de identidades desejadas. Foi apenas ao ingressar em uma rede de relações sociais – a dos amigos caiçaras - pautada por valores mais próximos dos que adotara para si é que Vivianne conseguiu melhorar do transtorno alimentar. E através de sua formação e atuação profissional, pode ampliar o círculo de relações com pessoas que compartilhavam de valores afins, e sustentar sua melhora.

Desse modo, o emprego da metodologia de histórias de vida na investigação da relação entre transtornos alimentares e fatores sócio-culturais adverte para o risco de pressupor uma relação direta e de conteúdo fixo entre transtornos alimentares e modernização/ocidentalização, e para a necessidade de compreender pessoas, suas ações e suas aflições em referência às múltiplas dimensões de relações sociais que as constituem.

 

 

Bibliografia

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Weinberg, C.; Cordás, T. A. Do Altar às Passarelas: Da anorexia santa à anorexia nervosa. São Paulo: Annablume, 2003.

 

 

 



[1] O termo “epidemia”, em seu sentido estrito, é empregado apenas no caso de doenças infecto-contagiosas, o que evidentemente não é o caso dos transtornos alimentares. Todavia, mesmo autores da área de saúde empregam o termo, como metáfora, para enfatizar o rápido aumento dos casos diagnosticados.

[2] A denominada teoria da aculturação já foi amplamente criticada no cânone antropológico contemporâneo, e é considerada ultrapassada. Todavia, a idéia de que uma cultura pode ser substituída por outra através do contato entre ambas parece ainda ter apelo em alguns estudos transculturais na área de saúde, sendo possível mesmo encontrar instrumentos que supostamente afeririam o “grau de aculturação” de determinadas populações. Ver, p. ex., MARÍN et al, 1987 e LIM et al, 2002.

[3] Os trabalhos de Thompson (1992;1994) podem ser considerados uma exceção, por basearem-se em histórias de vida de mulheres que, mesmo sendo norte-americanas, escapam ao perfil típico esperado, quer seja quanto a classe social, etnicidade, idade ou orientação sexual. Todavia, a abordagem de Thompson centra-se mais nas relações de poder no tocante às minorias no interior da sociedade americana do que em uma reflexão mais ampla sobre a questão da cultura de um ponto de vista antropológico.

[4] Minha pesquisa de doutoramento, desenvolvida junto ao programa de Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp, conta com o apoio de uma bolsa de estudos da Fapesp.

[5] Para fins deste artigo, centro-me em apenas duas referências (BECKER et alli, 2002;2007) que tratam especificamente dos aspectos mais qualitativos do estudo.

[6] Vivianne é um pseudônimo, escolhido pela interlocutora de pesquisa para preservar seu anonimato.

 

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